27 de maio de 2010

Flor, minha flor.

Em homenagem à minha linda amiga: Larissa Bortolli Menezes.
 
Ela notava e anotava. Não no bloco branco de sulfites recortadas em sua mão. Em seus olhos. Seu olhar registrava cada fração de movimento em cada pedaço de segundo. Um olhar penetrante e cheiroso. Cheirava a maresia pincelada de verde. Quando algo lhe agradava,  simplesmente sorria. O canto da boca levemente levantado e um suspiro curto. Fotografava somente tudo. E o mais interessante que é conseguia enxergar cores que nem Almodóvar poderia imaginar. O olhar de uma velha albina, o cheiro dos pés franceses, a beleza dos humanos e até o enjôo dos vinhos baratos. Geralmente a vida é tão corrida, ninguém nota, exceto ela. Ela acreditava herdar tal talento da sinceridade que jamais lhe faltara. Tinha consciência de sua falta de santidade ou até de sanidade mas o coração teimava em bater compassos compreensivos, entendedores e pacificadores. Estar ao lado dela dava um misto de alívio e curiosidade. Curioso era ela não se esforçar para ser tudo aquilo. Aliviante era saber que ela existia e continuaria ali. Um dia emitira um som que ecoaria com a mesma força ,e até com maior intensidade, mesmo a anos-luz de distância. Parecia frase de pensador mas estava mais para uma interjeição. Num abrir de lábios emotivos e sorridentes talhou: "Sou apaixonada pelos humanos". O peso da oração me fez tremer. Em prece, pedi a alguém que cuidasse dela se um dia eu faltasse. Meu desejo era de levá-la ao pequeno B612, de "Le petit prince" e protegê-la numa redoma. Mas logo desistira da ideia pois ela ama a liberdade. Então decidi pegá-la pela mão e mostrar a vastidão do mundo. Foi quando notei a imagem que cintilava no desenho pitoresco da pupila de seus olhos. Uma flor. Era assim que ela via o mundo. Poderia levá-la onde quer que fosse, era isso que veria. Flores. Eu me orgulhara disso. A partir daquele dia encontrei seu nome. Flor, minha flor. Eu te amo.

26 de maio de 2010

Pretérito Imperfeito do Subjetivo.

As coisas tinham envelhecido mas matinham ainda a mesma disposição. A ferrugem da antiga mesinha de ferro ornava com as folhas secas da árvore de uva-da-índia no clima gélido de outono. O sol ardia secando o orvalho que cobria tudo ao redor mas um vento frio cortante penetrava as frestas, uivando. O cercado de arame farpado e madeira velha parecia frágil e impotente. Uma pombinha tentava alimentar seus filhotes que ansiavam pela mãe no ninho aquecido da árvore. Alguém chegava andando sobre os montes de folhas murchas da umidade matinal. Sua face era um misto de rugas e nostalgia mas o olhar era o mesmo. O azul vivo dos seus olhos pintava o céu de poucas nuvens e observava a curiosa lembrança eternizada na cena bucólica. Sentou-se e ficou estático nas lembranças que corriam. Antigamente as outras cadeiras que rodeavam a mesinha tinham seus donos. Tudo tinha acontecido tão rapidamente que ele não imaginava estar ali um dia, sozinho e arrependido. Visualizou os erros do passado e respirou nostalgia. Não era fácil voltar à origem do futuro presente. Pensou em como produziria seu epitáfio e concluiu que havia coisas ainda inacabadas. Esperou ansiosamente avistar alguém chegando. Ilusão. A solidão fora sua escolha e de brinde o arrependimento. Se ele ao menos pudesse... Mas não havia mais se. Resolveu aproveitar cada momento que estaria por vir. O presente encorajara-se e o pretérito construiria o futuro. Levantou-se, olhou para o horizonte e teve a sensação de um parto. A partir daí, recomeçou.