29 de maio de 2011

Rua das Flores, 532.

Quase ninguém prestava mais muita atenção nela, era comum ver aquela senhora quase estática, não fosse a cadeira de balanço. Quem passasse pela Rua das Flores, veria no 532 a figura dela que já ornava com o jardinzinho ladeado da calçada de azulejos quebrados formando um mosaico mal-feito. A casa de madeira, antiga, era pintada de azul clarinho, e os olhos dela pareciam acompanhar as matizes que a cena apresentava. Do chão, subia a linha até suas mãos enrugadas que se movimentavam sempre no mesmo compasso, alternado pelas vezes que tinha que puxar a linha que enroscava, parecia música. As vezes ela assoviava a canção: "Se essa rua, se essa rua fosse minha...". Era quase como um sino, todo dia no mesmo horário podia-se ouvir o assoviar afinado e agudo da velhinha. As vezes ela sorria também, o mistério do sorriso instigava a qualquer um que o visse, jamais se soube que histórias lhe arrancavam aquele bom esticar das rugas faciais. Boatos diziam que fora casada com um moço lindo, parecido com príncipe encantado, mas eram boatos, se de fato eram verídicos, não se sabe. Num dia morno, de meio-sol e quase-cinza, não se ouviu mais o assovio, nem se viu mais sorriso. Dava até vontade de chorar ao passar pela Rua das Flores e ver, em cima da cadeira de balanço, um tapete de crochê inacabado, e o novelo no chão.

22 de maio de 2011

Poesia.

Até onde conseguia enxergar, era cidade. Tinha certeza de que era urbano, gostava de cinza, concreto e de história. Com os olhos passeou pelas ruas iluminadas e enxergou o que lembrava, sorriu levemente abençoando a cidade noturna. Olhou para trás e o viu deitado na cama, pernas entrelaçadas aos lençóis brancos e frescos num amontoado que sugeria o resultado de uma noite intensa de amor e luxúria. Voltou a olhar para a cidade e pensou nos lugares que o destino já lhe apresentara, achou engraçado. Mirou o copo com resto de uísque e o cinzeiro de vidro e tentou visualizar os lugares que ainda conheceria. Ouviu alguém se mexer, era só o homem na cama, mudando de lado. Sentiu um calafrio tocar sua pele limpa, não acreditou ser o frio da madrugada, parecia ser poesia. Sim, poesia urbana, ele enxergava poesia em cada tijolo empilhado, cada vão de concreto, cada nuance de cinza que tingia a cidade. Jurou ter visto um casal dançando na fumaça que saía de um prédio velho. A sinfonia que os carros faziam numa sincronia desconexa anunciava a aurora, novo dia, ele suspirou. Sentiu duas mãos masculinas apertarem-lhe a cintura e um bom-dia sussurrado lhe arrepiar as costas. Foi para a cama, viver a poesia lhe fazia bem.

19 de maio de 2011

Dos sentidos da vida.

Foi difícil encarar aquele buraco. Ele olhava, olhava, olhava e não entendia. Tão fundo quanto aquele buraco era o vazio que sentia no peito, talvez maior ainda, perdera a noção de medidas. Acendeu um cigarro, fumaça em ascenção. Pensou na gravidade e em todas as leis que era obrigado a seguir pelo fato de ser humano. A vida sempre lhe fora complicada de entender, quisera não querer entendê-la. Uma das coisas das quais gostaria de estar imune era o apego, maldito cordão umbilical e o que ele representaria por toda vida. Ou melhor, o que ele representaria ali, na morte. Se bem que, não fosse ele, não lamentaria o que estava lamentando, estava confuso. Deixou que a emoção lhe falasse e sua lágrima molhou um pedaço do caixão. As coisas continuavam andando, a joaninha na beira do abismo do buraco, as formigas, a grama verde suja pelo barro cavocado. Só não sabia se elas entendiam os sentidos como ele julgava entender, talvez caminhassem sem sentido, talvez não. E entendeu o sentido da vida ao mirar o caixão no fundo buraco negro. Por toda e qualquer conquista que se tenha feito, a resposta estava ali. Pensou em sua biblioteca particular, em sua coleção de trevos de quatro folhas, do pão de casa cortado e coberto por um guardanapo na cozinha, da louça limpa escorrendo e do cheiro do amaciante da lavanderia. Abraçou seu próprio coração e sentou ali mesmo, até não se lembrar mais.

15 de maio de 2011

Felicidades.

Levantei bem cedinho num dia desses que o clima nos abraça e um sorriso já está no rosto, fui logo ao espelho. Lavei meu rosto e me encarei. Olhei nos meus olhos e percebi que a minha história se passava em cores que eu podia sentir e agora tocar. Senti um cheiro de rosas no ar e meus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto as lágrimas rolavam meu sorriso se alegrava ainda mais e meu coração sentia-se livre. Aspirei o ar fresquinho e lembrei da pureza dessa vida que aos poucos lapidei. Coloquei a mão no peito e senti meu coração, marcado pelas cicatrizes dos sofreres, mas batendo, feliz. Expirei o ar com uma gargalhada de felicidade e chorei novamente. O sol esquentava meu coração pela janela, e o dia pedia que eu tirasse meu pijama. Assim deixei a manhã, a noite receberia meus amigos para uma festa de aniversário.

8 de maio de 2011

Natureza maternal.

A aurora trazia um cheiro de rosas vermelhas com orvalho ornamental. Os pássaros brincavam com melodias de ninar e as flores se exibiam num frenético movimento de cores. Numa caleidoscópica visão, as borboletas desenhavam o céu azulzinho, com nuvens nos mais variados formatos. O lago, coberto de pétalas coloridas, era riscado ao meio pelo caminho dos patinhos. E o paraíso estava completo: Uma mamãe amamentava seu filhinho aos pés da cachoeira sorridente. 

3 de maio de 2011

Passando. Passado.

Te encontrei andando pela rua. Nesse frio que deus nos dá, encapotado de blusas e com as bochechas vermelhas. Eu tenho certeza que você me viu, mas você fingiu que não. Meus olhos se encheram d'água, eu quis frear. Fotografei lentamente você fingindo que eu não fazia parte do seu mundo. Dois pólos que agora se expeliam, mas que outrora magneticamente se juntavam. Enxerguei a fumaça que sua respiração fez quando o ar encontrou o gelo desse clima, e lembrei de quando o teu hálito tocava meu rosto tão de perto e seus olhos me miravam por séculos em um só minuto. Você derrubou um objeto no chão e teve que recuar para pegá-lo, eu notei. Você não gosta de recuar, nunca, mas as vezes é preciso fazê-lo. Não conhecia aquele objeto, e era estranho já que julgava conhecer tudo relacionado a você, talvez tenha me enganado, ou você a mim. Será que você queria mostrar isso recuando? Até cheguei a achar que só queria pegar algo que caiu no chão, mas não. Não, você me olhou. Você não direcionou os olhos aos meus, nem sequer tirou o olhar do objeto, mas eu sei que me olhou, estou certo. Titubear não faz seu tipo, e você o fez. Me doeu, como nunca antes. Olhei você dobrar a esquina e ignorar tudo o que eu passei, tudo o que você passou, e o frio me tomou de novo e me agasalhou.