31 de agosto de 2011

Do primeiro.

Foram três encontros até que chegasse a coragem. Digamos que ela, a coragem, nascera pequenininha, tímida. Mas ela nasceu. Como assim? Nunca beijou? Me sentia pressionado pelos outros. Não, não era mais adolescente. Ou pelo menos não me considerava mais assim. Tinha 18. Mas aquilo me fazia voltar ao que eu chamava adolescência. Acho que este sentimento é o que define adolescência. Senti meu coração na boca, borboletas não voando, mas me carregando pelo estômago. E o medo? Daria um livro todo à parte. Dia marcado, hora marcada, vou caminhando lentamente ao local. Ensaiava o que dizer, e apagava tudo no mesmo instante. Pensava em parar, voltar atrás, mas as vozes dentro de mim me pressionavam. Foram três encontros, o primeiro um fiasco, o segundo metade de fiasco, o terceiro talvez não chegasse a um terço, mas mesmo assim, fiasco. Palavras de lado, mirei a boca. Senti vontade de senti-la. Me aproximei. Não era mais uma pessoa à minha frente, era uma boca, a que me daria o meu primeiro beijo. Como quem coloca o dedo em alguma matéria nunca antes conhecida na face da Terra, encostei meus lábios trêmulos naqueles lábios mais seguros que os meus. O som de Sabdy e Júnior do rádio e aquele halls não foram o que eu senti. Foi doce, foi macio, foi estranho, foi novo. Mas foi. Depois de me despedir, não pensei na marca que poderia ter ficado nos meus lábios, agora inchados. Mas na marca que ficara ardendo, me esquentando, no meu coração. 

27 de agosto de 2011

Da efemeridade

Levantou feliz. Há noites não dormia assim. A chuva na janela embalara a noite inteira de sono, e uma brisa risonha tocava-lhe a face tirando dele um sorriso gratuito. Sairia para o trabalho às 07:45, mas despertara cedinho, madrugadinha, de um descanso mais que merecido. Pensou em colocar uma música para embalar o feitio do café, mas haveria som mais perfeito que a chuva leve e os passarinhos anunciando o tímido sol por trás das nuvens? Vestiu a pantufa e, ainda de pijama, coou o café. Sentou na cama. Levou um tempo pensando na efemeridade da vida quando rapidinho terminou o pão de queijo. Há muito tempo a inspiração não batia-lhe à porta. Lera Adélia Prado e invejara-a nos poemas que ela havia escrito falando sobre sua falta de inspiração. Até a falta de inspiração a inspirou. Olhou a chuva novamente e lembrou da infância, do tempo de banho de chuva e algazarra na casa da avó. Passeou pelos esconde-esconde, pega-pega, alerta, rolimãs, queimada, gude. Lembrou exatamente de como era sua escola, sua preocupação com a tarefa de casa, sua vitória do grêmio estudantil. As aulas de informática e de inglês que nunca reclamara para ir. A primeira paixão, o primeiro fogo no coração, ainda pequeno, quando pensava não saber lidar com aquela situação. Então o presente desfocou sua visão e percebera que não tinha aprendido a lidar como situações como aquelas da infância. Viver era mesmo estranho. O relógio digital ganhou vida, tirando-o a concentração do sonho acordado. Hora de ir. Levantou-se, trocou-se. Antes de sair, parou à porta e olhou cuidadosamente o que tinha construído ao longo de sua vida. Aquilo, sem dúvidas, era seu. Sentiu um amargor na boca, uma vontade de dividir tudo aquilo com alguém, e decidiu partir. Não há por quê chorar. Fechou a porta e partiu. Não conseguiu dividir com alguém tudo o que conseguira. Nem consigo mesmo. Não voltou mais ao seu apartamento. E nem ao trabalho. Morrera a três tiros, vítima de um assalto. Em sua mão, uma carta, que o destinatário não veria, e o sangue no chão lavava todo sonho mortal.

1 de agosto de 2011

Proust.

O prato principal era Proust. De "Em busca do tempo perdido" a "Sodoma e Gomorra" tudo lhe apetecia. Vontade insana de deixar o mundo e mergulhar no escritor e, simultaneamente,  imenso medo de esgotar suas obras e tudo o que tratava delas. Queria Proust. Desejava Proust. Lambia cada palavra com o desejo de sentir o gosto mais específico de cada uma. Sentia ciúmes de Proust. Sentia-se traído só de pensar que a cada leitura de sujeitos diferentes, pensamentos que nunca seriam expostos nos papéis passariam pelas mentes e das quais ele jamais teria conhecimento. Precisava pensar que era somente ele. E Proust. Talvez fosse a identidade enorme. Servira o exército também, mesmo com problemas de saúde, por um ano. Talvez também fosse incompreendido em vida, como Proust. Seria a ligação enorme com a mãe que o aproximava tanto do que Proust era? Eram tantas identidades. A homossexualidade era comum, também. Os últimos cinco anos mudaram sua vida, assim como os cinco grandes anos transformadores da vida do autor. E o que ele tinha? Apenas livros, e mais livros, palavras que explicavam quem ele era, e quem os outros o julgavam ser. Se ao menos pudesse se encontrar com ele, estaria disposto a cortar seus pulsos e chegar lá. Mas não sabia se a morte o levaria a isso, na incerteza, melhor aproveitar cada segundo, com Proust. No espelho, encontrou alguém perdido. Poderia ser ele Proust, reencarnado, não sabia mais no que acreditar. Sabia que naquele dia, seria morto por ele mesmo, por sua boca. Seis páginas o separavam do fim.