Levantou feliz. Há noites não dormia assim. A chuva na janela embalara a noite inteira de sono, e uma brisa risonha tocava-lhe a face tirando dele um sorriso gratuito. Sairia para o trabalho às 07:45, mas despertara cedinho, madrugadinha, de um descanso mais que merecido. Pensou em colocar uma música para embalar o feitio do café, mas haveria som mais perfeito que a chuva leve e os passarinhos anunciando o tímido sol por trás das nuvens? Vestiu a pantufa e, ainda de pijama, coou o café. Sentou na cama. Levou um tempo pensando na efemeridade da vida quando rapidinho terminou o pão de queijo. Há muito tempo a inspiração não batia-lhe à porta. Lera Adélia Prado e invejara-a nos poemas que ela havia escrito falando sobre sua falta de inspiração. Até a falta de inspiração a inspirou. Olhou a chuva novamente e lembrou da infância, do tempo de banho de chuva e algazarra na casa da avó. Passeou pelos esconde-esconde, pega-pega, alerta, rolimãs, queimada, gude. Lembrou exatamente de como era sua escola, sua preocupação com a tarefa de casa, sua vitória do grêmio estudantil. As aulas de informática e de inglês que nunca reclamara para ir. A primeira paixão, o primeiro fogo no coração, ainda pequeno, quando pensava não saber lidar com aquela situação. Então o presente desfocou sua visão e percebera que não tinha aprendido a lidar como situações como aquelas da infância. Viver era mesmo estranho. O relógio digital ganhou vida, tirando-o a concentração do sonho acordado. Hora de ir. Levantou-se, trocou-se. Antes de sair, parou à porta e olhou cuidadosamente o que tinha construído ao longo de sua vida. Aquilo, sem dúvidas, era seu. Sentiu um amargor na boca, uma vontade de dividir tudo aquilo com alguém, e decidiu partir. Não há por quê chorar. Fechou a porta e partiu. Não conseguiu dividir com alguém tudo o que conseguira. Nem consigo mesmo. Não voltou mais ao seu apartamento. E nem ao trabalho. Morrera a três tiros, vítima de um assalto. Em sua mão, uma carta, que o destinatário não veria, e o sangue no chão lavava todo sonho mortal.
Credo! Que triste!
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